Simplesmente Dorcila

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ROTINA


Depois de tomar seu café lendo o jornal, sem parecer enxergá-la, ele, já de pé, deu uma mordiscada em um croissant e encaminhou-se para a saída. Irina acompanhou-o até a porta e, como de costume, esperou por um beijo. Ouviu um “até à noite” apressado, enquanto um beijo chocho resvalava em seu rosto. Permaneceu à porta, esperando para acenar-lhe. Ele, rapidamente, tirou o carro da garagem e saiu, sem sequer olhar para os lados.

Ela fechou a porta e caminhou devagar até o quarto. Enxugou uma lágrima que teimava em cair e retirou, com cuidado, a máscara de esposa feliz. Entregou-se aos afazeres domésticos, mas só seu corpo estava ali. A mente vagueava sem rumo. Enquanto dava um jeito na casa, varria suas frustrações para debaixo do tapete, para que não as visse a toda hora, para que elas não a impedissem de levar adiante aquela convivência insossa, que era a única coisa concreta que lhe restava. Se é que se poderia dizer que era concreta.

Nesse dia, entretanto, Irina sentiu alguma coisa no ar, como se algo diferente fosse acontecer. Confirmando sua intuição, ele chegou em casa mais cedo, fato que nunca acontecia. Contente, ela disse que iria preparar-lhe um jantar especial, com seus pratos preferidos. Para sua surpresa, ele convidou-a para irem jantar em um restaurante naquela noite. Irina mal podia esconder sua agitação. Era o seu aniversário e ele havia-se lembrado! Porém, não sabia o porquê daquela insegurança, apesar da felicidade que sentia.

Com o coração acelerado, vestiu-se como num sonho. Colocou aquele vestido vermelho de cetim, que vinha aguardando uma ocasião especial para ser usado. Quando descia as escadas, sentindo-se tão linda quanto uma estrela de cinema, ele, que estava sentado no sofá da sala em frente à TV, olhou-a com um ar desaprovador e perguntou-lhe se ela não havia exagerado no traje e na maquiagem. Imediatamente, o encanto se quebrou. Por pouco, Irina não disse a ele que não iria mais. Respirou fundo e não respondeu nada. Apenas sorriu. Um arremedo de sorriso, que exigia dela uma força descomunal.

No restaurante, jantaram quase mudos, só comentando vez ou outra sobre os pratos servidos. Nem uma atenção especial, nem um botão de rosa, nada. Depois, vendo um grupo de amigos do escritório, ele chamou-os, para que compartilhassem uma mesa maior. Enquanto todos tomavam seus lugares, virou-se para Irina e disse, todo sorrisos: “- Olha só o seu prestígio, com tantos amigos à mesa!” Ela quase desabou. Esboçou um meio-sorriso, tentando disfarçar sua decepção perante os convidados. A comemoração foi até altas horas, só se falando de trabalho. Ela assistia a tudo, muda, como se não estivesse ali. Foi assim a festa do seu aniversário.

Chegaram em casa e subiram para o quarto. Irina estava em frente ao espelho quando ele veio ao seu encontro e abraçou-a pelas costas. Sem dizer uma palavra de carinho, começou a beijar-lhe a nuca, as orelhas, os ombros. Estranhamente, aquilo incomodou-a, fazendo-a sentir um mal-estar que nunca sentira. Foi se sentindo pouco à vontade, desconfortável mesmo, e só com o olhar, demonstrou que não estava propensa a nada, a não ser dormir. Ele olhou-a sem entender, provavelmente pensando não compreender as mulheres, deu de ombros e foi se deitar.

Ela foi tomar um banho, tentando apagar da mente aquela noite desastrosa, que ele imaginava ter sido perfeita. Demorou uma eternidade, como se nunca mais fosse sentir-se ela mesma. Quando voltou para o quarto, o homem dormia pesadamente. Sem fazer barulho, Irina deitou-se ao seu lado, virou-se de costas e ficou pensando se aquele dia não estaria marcando o começo do fim.
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Dorcila Garcia
Enviado por Dorcila Garcia em 04/06/2007
Alterado em 07/04/2022


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